Monday, June 9, 2014

Eu, O Outro (Português), de Deana Barroqueiro

Cais de desembarque

Apesar do cansaço, o sangue parece correr mais vivo e quente, porque o coração vibra como um pequeno tambor, com um som que só os meus ouvidos escutam. Macau está já ali, ao alcance dos olhos, cada vez mais cerca, uma paisagem que procuro fazer minha, com o olhar da alma, mas também, como a idade não perdoa, com o da Sony, mais frio e objectivo, permanente.
Largo a câmara e seguro nas mãosO Corsário dos Sete Mares” – o romance que venho apresentar aos macaenses, a convite da Casa de Portugal –, para que a minha personagem ficcionada possa reencontrar os vestígios da sua passagem por este lugar, enquanto personagem real que por aqui navegou há mais de 450 anos. Contudo, o ferry que me traz de Hong Kong numa travessia rapidíssima deste pequeno troço dos mares da China, em nada se pode comparar à nau, caravela, junco ou manchua que transportou o protagonista do meu livro.
 Nem a minha viagem à sua! De Lisboa a Macau levo já umas 24 horas, entre voos e pausas nos aeroportos de Amesterdão e Hong Kong –  um sopro de tempo, mau grado as dores nos ossos, as pernas inchadas e a cabeça pesada da falta de dormir. O meu Corsário, então na pele de cordeiro de um noviço da Companhia de Jesus, levou dois anos a percorrer metade desta distância, desde Goa a Malaca, Sanchoão, Lampacau e por fim Macau, lugar de escambo onde só há muito pouco tempo se começara a ouvir falar português.
O ferry acota ao terminal e Macau recebe-me como um espectáculo de luz e sons de um mundo diferente do meu e, no meio da minha estranheza de ser o Outro, um fo-lang-chi como o meu protagonista, descubro com um suspiro de alívio uma mão amiga a acenar-me do outro lado da alfândega. 
***
Templo de A-Má
A ampla baía que avistara da amurada do navio, rasgada na embocadura dos rios Sikiang e Chukiang ou Rio da Pérola, oferece-se como um formoso corpo de mulher, com as suas colinas verdejantes, aterros e florestas. Com os olhos postos na silhueta graciosa do templo, que do alto monte parece vigiar o porto, salta do batel com um inconfessável desejo de conquista, mas logo solta uma irada blasfémia, ao sentir as botas afundarem-se até aos joelhos na espessa lama do ancoradouro de Amaquao, na Porta da Baía.
Alça aos céus um olhar envergonhado, rogando perdão a Deus daquele pecado e dos muitos vícios da sua passada vida de aventureiro, ainda tão próxima que a honesta condição de noviço da Companhia de Jesus não lograra todavia expurgar-lhe da alma e da língua. Mau grado as muitas orações, jejuns, sacrifícios e penitências, mil vidas que vivesse na pele de um justo não bastariam para resgatar as malfeitorias que fizera durante os dezoito anos de deambulações pelo Oriente, como mercador, corsário e mercenário.
Recusa, com um gesto de enfado, a ajuda dos três escravos forros que querem transportá-lo ao colo para a praia. Apesar de lhes ter dado alforria – como a todos os demais servos da sua abastada casa, quando renunciara ao mundo para entrar na Companhia –, os moços tinham-lhe implorado, de joelhos e em lágrimas, que os deixasse acompanhá-lo naquela perigosa viagem ao Japão. Acabara por ceder, comovido com tamanha dedicação e também pela necessidade de levar consigo um séquito de criados, visto que não viajava na pele de um simples missionário, mas na do embaixador do Vice-Rei D. Afonso de Noronha ao dáimio do reino do Bungo.
Biombo Namban no Museu Marítimo de Macau
Progride a custo através lamaçal escorregadio até ao terreiro seco do cais, levando na sua cola os moços carregados com as arcas das peitas para amansar os mandarins, das odiás que o Vice-Rei envia a Otomo Yoshishige e das viandas e restante fato, próprios de um rico mercador, como ele fora ainda há bem pouco tempo. Já não volverá a Lampacau, onde cumpriu a missão de que o encarregara o padre mestre Melchior Nunes Barreto, deixando a igreja terminada.
O seu superior terá certamente mandado alguém a esperá-lo. Abarca com o olhar o porto, se é que porto se pode chamar ao amontoado de construções rudimentares de madeira e não reconhece o lugar, apesar de ter sido um dos primeiros portugueses a pisar a Terra dos Lotos, nome dado pelos chins àquele pedaço da terra firme da China, até então interdita aos fo-lang-chi.
Sente no peito um aperto de saudade, à vista das longas filas de homens de desvairadas raças, serpenteando e cruzando-se entre o ancoradouro e os armazéns, num vaivém de cargas e descargas. As narinas sorvem o hausto dos corpos suados, à mistura com essências e especiarias, um odor tão familiar que se lhe entranhou na pele, e aos seus ouvidos soa como música o estrupido de ordens berradas em muitas línguas, de gritos e sons de pancadas. Escravos seminus e contratados locais movem-se em passo de corrida, uns carregando à cabeça ou nas costas enormes cestas e potes martaban, com sedas e louças da China; outros, de dorso curvado e hirto como um eixo de balança, sustentam nos ombros a grossa vara de bambu, de onde pendem por cordas, de cada lado, num milagre de equilíbrio, pesados fardos de mercadorias.
De mor espanto, porém, é o mulherio que enxameia o lugar, fêmeas de todas as cores, formas e idades, com as cabeças cobertas por chales, sherazzes ou saraças e o corpo enrolado até aos pés em lunghees, ao modo de saias. Em muito maior quantidade do que viu em Lampacau, onde cinco padres da Companhia exerciam o seu ministério há já algum tempo, persuadindo os homens, com promessas de céu ou ameaças de excomunhão e inferno, a escolher uma só das suas mancebas para com ela se casarem e forçando-os (muito contra vontade) a repudiar as restantes. Amaquao, todavia, é ainda terra de ninguém, sem lei nem ordem, um paraíso para os tratos de saque e de corso, em particular para a compra de escravas, mancebas e concubinas.
Como aquele bando de meninas, escoltadas por uma mulher e dois jaus armados, que um capitão desembarcou da sua manchua, a pouco menos de um tiro de pedra do lugar onde se acha. Um mercador português espera-as com os seus criados que se apressam a levá-las discretamente do cais, não vá algum aldeão ou tratante natural da terra, denunciá-lo às autoridades por roubo de crianças, um crime punido com a morte. As novas peças não serão vendidas no mercado aberto, como as jaus ou as negras, mas sonegadamente, no armazém ou na casa do vendedor. Perdera o conto das vezes a que assistira ou participara num tal escambo, sempre a medo, porque os mandarins, a fim de acabarem com os tratos dos portugueses, tinham posto a correr o atoarda de que os bárbaros fo-lang-chi roubavam meninos e meninas para os comerem, embora soubessem que eram naturais da terra os tratantes que vendiam as crianças aos estrangeiros.
Nesse preciso instante, a guardiã das meninas vira a cabeça na sua direcção e o fugaz vislumbre do seu rosto causa-lhe tamanho vagado que quase o faz tombar por terra, desacordado. Meng? Não podia ser! Àquela distância, todas as mulheres chins se parecem. É decerto o Demónio a tentá-lo, ofuscando-lhe a razão com a miragem do fruto proibido. Achar ali a noiva que perdera, há quase uma década, nos confins da China, seria o mais improvável de todos os sucessos…
***
A minha amabilíssima anfitriã da Casa de Portugal leva-me de carro numa visita pelo centro histórico da cidade, seguindo para as ilhas de Taipa e Cloane, agora ligadas à península por modernas pontes e, tal como Macau, vítimas de uma construção desenfreada, tendo grande parte das suas florestas dado lugar a selvas de cimento, onde prolifera um número impensável de casinos.
São excepção os bairros antigos, construídos pelos portugueses, ao longo de séculos. Surgem como oásis de beleza no deserto de pedra e um descanso para os olhos. Sinto gorar-se a minha busca do tempo perdido. A ligar-me à vida do meu Corsário só dois nomes: o templo de A-Ma que já então era avistado, na encosta da colina da barra, pelos matalotes dos navios da veniaga que ali vinham lançar âncora, e Mong H’á, não pela sua fortaleza, muito posterior, mas pela antiga povoação, cujos aldeões fizeram tratos com os primeiros fo-lang-chi que aqui arribaram e deram ao ancoradouro desabitado o nome de Amaquao.
Regressamos ao entardecer e o carro parece navegar num mar de luz, uma luminosidade densa e quente, quase mágica, que só o Oriente possui. Ao dobrar da esquina o nome na bonita placa de azulejo branco e azul (tão português), atinge-me como um murro: “Rua Fernão Mendes Pinto”! Acaso ou premonição? O meu Corsário corporiza-se ante os meus olhos e eu mordo os lábios para não gritar.
 ***
– Irmão Fernão Mendes, fizestes boa viagem? O padre mestre pediu-me que vos viesse esperar para vos levar até à sua pousada.
A voz sobressalta-o, arrancando-o à sua agonia. Um homem ainda moço mirava-o de alto a baixo com surpresa. A duras penas domina a comoção e, para abafar uma voz interior que o perturba, saúda efusivamente o recém-chegado:
– Irmão Gregório Gonçalves, praza a Deus que vos vejo de boa saúde! Já haveis convertido muitos chins?
Conhecera em Goa o presbítero secular, que viera instalar-se no aldeamento provisório dos mercadores portugueses para, segundo dissera, acabar com os seus desmandos e arruaças e fazer cristãos entre os chins da aldeia de Mong H’á.
– Perdoai o meu atraso, mas não vos reconheci… Vinde comigo.
– Não vos escandalizeis com a minha aparência, meu bom irmão, venho trajado não como noviço da Companhia de Jesus, mas como o embaixador Fernão Mendes Pinto – explica, sorrindo do seu pasmo. – Os negócios que me trazem e ao padre Melchior Nunes Barreto a estas partes da China e do Japão precisam de ser feitos com muita eficácia e prudência. Se quisermos que os mandarins nos recebam e tratem connosco, tanto aqui como em Cantão, do resgate dos cinco portugueses que lá estão cativos, há mister apresentarmo-nos com alto estado, como embaixadores e letrados, ofícios respeitados acima de todos os outros, e não com as lobas de sacerdote, porque os mandarins desprezam os religiosos de qualquer lei, tachando-os de gente ignorante e vil.
O rubor sobe ao rosto do presbítero e Fernão percebe que ele já sofreu na pele o desdém dos soberbos oficiais chins. Sorri, de novo, vendo-o mudar de assunto:
– O padre mestre contou-me as vossas andanças por estes mares, assim como o cativeiro em Pequim, onde haveis aprendido a sua língua e costumes. Prendas que lhe foram de muito serviço na sua primeira visita a Cantão e das quais sentiu muito a falta, quando agora lá esteve sem vossa mercê.
Esquecido já daquela assombração que o demónio arrancara ao inferno das suas recordações para o inquietar, Fernão arde de curiosidade por saber o resultado das demandas do padre Melchior em prol dos cativos, mas nada pergunta ao presbítero, porque os assuntos da Companhia de Jesus não são da conta de outras ordens.
– Eu andei muitos anos nestes mares, às presas de mouros ou a fazer veniaga, em embarcações de chatins gentios, com um punhado de portugueses e chusmas inteiras de chins que, como sabeis, levam sempre com eles as famílias, pelo que me apliquei a falar a sua língua. Depois, em Pequim, na casa do Capitão a quem servi até ir cumprir a pena de trabalhos forçados na Grande Muralha, aprendi a fala dos mandarins, que é mais difícil.
– Já havíeis estado em Amaquao?
Atravessavam o animado arraial dos portugueses, um palhal de cabanas de bambu, tábuas e ola, com cobertura de palha de arroz. Pelo seu aspecto, torna-se difícil imaginar a imensa riqueza que passa pelas mãos dos mercadores que ali fazem veniaga e lhes enche os cofres, a salvo da vigilância do Vice-Rei, subtraindo à Coroa o quinto dos lucros a que se acha com direito, apesar de não gastar sequer um cruzado nestas viagens privadas.
Quando ali tiver efeito, como já acontece em Lampacau, o acordo que Leonel de Sousa, o experiente capitão-mor da Viagem do Japão, logrou concertar por palavras, no passado ano, com o haidao Wang Po, o mais alto mandarim de Cantão, os portugueses poderão fazer livremente os seus tratos, mediante o pagamento de direitos à China, como as outras nações. Fernão acredita que Amaquao, com a sua magnífica baía ao abrigo de tufões e situado num local privilegiado, às portas de Cantão, em breve há-de de suplantar, em riqueza e importância, todos os outros portos de escala na derrota para o Japão.
– Vim aqui dar à costa, por acidente, – responde-lhe com uma risada, sem partilhar os seus pensamentos –, num lugar chamado A’ Wan Kai, onde há uma rocha em figura de rã que parece cantar com a maré cheia. Foi nos meus tempos de mercador, quando andava ao serviço do fidalgo António de Faria, à caça ao corsário Coja Acem, que nos tinha tomado dois navios com uma rica carga do capitão. Apanhámo-lo cerca da Ilha dos Ladrões e vencemo-lo numa tão fera peleja que fomos forçados a arribar a esta península com os navios todos desconcertados e as mercadorias molhadas da muita água que entrara pelos rombos das bombardadas. Julgámos que era uma ilha deserta, porém a novidade colorida das sedas e outros panos que puséramos a secar, pendurados nas árvores ou estendidas nos rochedos, atraiu uma multidão de chins da única povoação que havia na raia da península com a terra firme, que pasmaram de nos ver e aos malaios, indianos e escravos que trazíamos, gente estranha, tanto nos trajos como nos rostos, sobretudo os “diabos negros” de que tinham muito medo por causa da cor da pele e dos dentes brancos.
– O povo de Mong H’á pinta os dentes de negro, para ser diferenciar dos animais – interrompe o presbítero, sorrindo. – Correstes também outro grande risco, por ser interdito, sob pena de morte, aos portugueses pisarem terra da China e aos chins de nos ajudar ou mercar connosco.
– A poderosa armada do haidao fushi dava-nos caça como se fôssemos wokou, os ladrões do mar que lhes assolavam as costas! Contudo, tendo a gente de Mong H’á muitas queixas contra Coja Acem, pelas suas frequentes razias à povoação, apesar do decreto imperial que proibia os tratos com os fo-lang-chi, os chefes das famílias Hoi, Cheong, Lam e Chan quiseram mostrar-nos a sua gratidão por os termos livrado do terrível wokou, agasalhando-nos nas suas casas e abastecendo-nos de arroz e legumes frescos das suas plantações. As mercadorias que lhes demos em troca, aguçaram-lhes o apetite para mais, garantindo-nos os chefes que os da nossa nação seriam sempre bem-vindos a fazer ali veniaga, porque eles iriam requerer licença dos mandarins. O que foi muito do nosso agrado, por Amaquao estar mais cerca de Cantão, ser terra firme e povoada de gente amiga.
  – Apesar das mostras de amizade, os aldeãos construíram uma forte cerca de bambu, à roda da povoação, não fosse o diabo tecê-las! – diz Gregório, com ironia. – Contudo, devem ter feito algum acordo com os mandarins, porque já se faz aqui uma feira, às claras, embora os mercadores lhes paguem grossas peitas para eles fecharem os olhos. Mesmo assim, quando chega a monção, os lauteas regedores obrigam-nos a destruir as casas e a partir. Na passada monção, eu desobedeci e fiquei numa cabana, com alguns cristãos.
– E deixaram-vos em paz? – estranha Fernão, sabendo que os lauteas não perdoam o menor desacato às suas ordens.
O presbítero franze o rosto, em jeito de troça:
– Arrasaram-me a cabana e prenderam-nos, a mim e ao meu pequeno rebanho, dando-nos açoites e outros maus tratos, quiçá por temerem alguma traição ou por não termos com que lhes dar peitas. Libertaram-nos no início da monção, com a vinda dos navios dos mercadores. – E acrescenta, desafiador: – Quando se forem de novo, voltarei a fazer o mesmo, agora com mais razão, porque já tenho uma congregação de setenta e cinco cristãos, de que alguns são chins, e fizemos uma igreja, que pode ser de palha, mas é a primeira construída na terra firme da China. Olhai, irmão Fernão Mendes, chegámos ao nosso destino.
A casa do rico mercador, que dá pousada ao padre mestre, apenas se distingue das outras pelo tamanho e pelo enxame de escravos e criados que a povoam.
***
Esta manhã, deambulei com o meu marido pelo centro histórico de Macau, revisitando com vagar os lugares que a minha anfitriã me indicou – do Jardim de Vasco da Gama, que vejo da janela do nosso quarto no Hotel Royal, vamos ter à graciosa praça Tap Seac com os edifícios amarelo/ocre do Instituto Cultural, Biblioteca Central e Arquivo Histórico onde eu, se aqui vivesse, me haveria de perder no rasto dos meus aventureiros de passadas glórias.
Seguimos ao sabor do acaso por ruelas, becos e passagens cobertas, desembocando por fim na Rua Pedro Nolasco da Silva, com a sua bela calçada portuguesa, passadeira de honra estendida aos pés do Consulado e da Casa de Portugal. Rua pouco movimentada (coisa improvável nas cidades da China), com o ocre e o amarelo das fachadas reverberando no calor macio do sol. A contrastar com a rua de S. Domingos onde, depois de visitar a igreja, terminamos o nosso périplo na encantadora Livraria Portuguesa, que nos recebe como amigos de longa data.
Não me sinto turista, nem estrangeira, em Macau, antes personagem transposta para um universo paralelo, por obra e graça de algum yaojing malicioso ou dos editores de A Rota das Letras. Comove-me este pedaço de Portugal, do outro lado do Mundo, tão amado e preservado, durante séculos, contra os ventos e as marés da ganância de governantes medíocres. História viva, corpo de pedra e terra chinesas, alma saudosa forjada em ferro, azulejaria e telha portuguesa, tecida de memórias ancestrais, impregnada de essências e especiarias de ilhas afortunadas, moldada no sonho, suor e sangue de muitas raças. É esse espírito do Lugar e do Tempo dos Descobrimentos – vivências efémeras de épocas passadas e, por isso mesmo, tão voláteis e imprecisas –, que eu procuro apreender com a minha escrita.
Um Espaço do tamanho do Mundo e um Tempo de aventura, violência, crueldade e sofrimento, mas também de heroísmo, generosidade, conhecimento e honra. Desmesura infligida e sofrida. Paixão, morte e ressurreição do homem, a iludir a sua pequenez. Uma peregrinação iniciática, de que Fernão Mendes Pinto foi o exemplo maior: mercador, soldado mercenário, navegador, embaixador e escritor, treze vezes cativo e dezassete vendido, durante os vinte e um anos que navegou pela Índia, Etiópia, Arábia, China, Japão, Tartária, Macassar, Samatra e muitas outras partes da “pestana do mundo”.
Ruínas da Igreja de S. Paulo
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Melchior Nunes Barreto parece enfermo, de rosto pálido, olhos encovados e ombros vergados por invisível mas pesada carga. Fernão teme que o religioso pretenda seguir as pisadas do saudoso padre Francisco Xavier, morto em Sanchoão três anos antes, esgotado pelas viagens e pelo sonho de fazer a China cristã, uma missão impossível de que ele procurara, em vão, dissuadi-lo.  
O anfitrião do padre mestre está ausente, a fazer tratos com os capitães dos navios surtos no porto e o presbítero, sem entrar na casa, despede-se com um “ficai em paz, meus irmãos”. O padre mestre senta-o à mesa e os escravos acodem pressurosos a servir-lhe um refresco variado, onde nem falta um bom vinho português.
– Vossa paternidade sente-se bem? – pergunta, apiedado. Como se não lhe bastasse os azares da viagem ao Japão, Melchior procurara novos trabalhos e dedicara-se de corpo e alma ao resgate dos portugueses cativos.
– Vou indo, do mal o menos, praza a Deus! – Ri-se com bonomia e acrescenta: – E vós, meu filho, como deixastes Lampacau?
– A igreja está terminada, padre mestre, tal como vossa paternidade ordenou. 
– Ai irmão Fernão Mendes, essa foi a nossa mais proveitosa obra, nestes quase dois anos de viagem! Pouco mais temos feito do que navegar ao sabor dos mares, sempre com risco de vida e sem haver maneira de chegar ao Japão. Talvez esta missão não agrade ao Senhor e Ele nos queira de volta a Malaca ou Goa…
Fernão sente o desânimo do padre e teme que ele decida volver à Índia, indiferente ao prejuízo que causará à sua embaixada. Já não era a primeira vez que se arrependia da viagem e só não desistira ainda por não ter achado navio que o levasse de volta. Tinham saído de Goa no início de Abril de 1554 porém, devido aos atrasos e impedimentos causados pelos capitães de Malaca, só lograram desembarcar em Lampacau, em Junho do ano seguinte, perdida mais uma monção e sem navio para os levar ao seu destino. Forçados a invernar na ilha, tinham-se dedicado à espinhosa tarefa da salvação das almas da numerosa congregação de pecadores, confessando, celebrando casamentos e construindo a igreja.
         – Como poderia Deus não abençoar a nossa missão – argumenta, com fervor –, se o dáimio do Bungo e todo o seu povo nos esperam para se fazerem cristãos? Agora já falta pouco, padre mestre! A monção não tarda aí e são bastos os navios que nos querem lá levar, para também tirarem algum proveito da nossa embaixada. – E acrescenta, mudando de assunto para o distrair do mau propósito: – Como vos foi em Cantão? Resgatastes os cativos? Já sabeis toda a história dos juncos?
Quando, meses antes, acompanhara o padre na sua primeira viagem a Cantão, para lhe servir de jurubaça ou língua, não chegara a conhecer o mistério dos juncos desaparecidos nas costas de Fujian, porque não haviam chegado à fala com os cativos.
– Não os soltaram, pelo menos enquanto lá estive – lamenta o padre –, mas o mandarim regedor, graças ao pedaço de âmbar que lhe demos quando lá fostes comigo, mandou vir Mateus de Brito de Fujian para Cantão e eu pude falar com ele. A sua vista era um dó de alma. Nem parecia o fidalgo que é, sujo, descalço, com cadeias nos pés, cabeça descoberta e com as mãos e o pescoço metidos numa tábua, onde vinha escrito o crime de que era acusado.
Fernão estremece, ao sentir de modo quase real o peso da canga no pescoço, o cepo nas mãos e as cadeias nos pés, tormentos terríveis que sofrera durante a sua prisão no tronco de Pequim, com oito companheiros, condenados a pena de morte. Fora a sua última aventura de corso, na frota do capitão António de Faria, quando o seu navio naufragara na baía de Nanquim e os nove sobreviventes portugueses, lançados numa inóspita praia, davam graças a Deus por estarem vivos, sem saber que os esperava uma peregrinação de tormentos pela China, via sacra tão dolorosa que não ficaria decerto atrás da sofrida por Mateus de Brito ou Galiote Pereira.
Eu entrei por espia da terra de promissão, a fim de dar novas dela e deixei lá o padre Estevão de Góis a aprender a língua e abrir caminho aos nossos irmãos para que possam ficar nas suas cidades e fazer cristãos.
Fernão interrompeu-o, impaciente, quase esquecido do acatamento devido ao seu superior:
– Não há maior engano do que cuidar que em algum tempo possa haver cristãos chins! Só se Deus fizer outros de novo, porque destes, que ao presente há na terra, nem vale a pena falar. Para que se possa fazer algum fruto entre os chins, há mister aprender bem a sua língua, lei e usos e ir com uma grande embaixada d’el-rei de Portugal com ricos presentes para o imperador, pagar grandes peitas aos mandarins, que são muito tiranos e cobiçosos, a fim de assentar pazes e direitos com eles, para que nos deixem lá viver anos e não apenas o mês que concedem aos mercadores.
           – Vamos indo – diz Melchior, levantando-se do banco com um suspiro de cansaço –, que prometi ao presbítero Gregório rezar missa na sua igreja, a primeira construída no continente. – Fernão dá-se conta do tom de despeito, na voz do padre, que muda de assunto, como envergonhado do seu ressentimento: – Pelo caminho conto-vos a terrível odisseia dos nossos patrícios e também um estranho caso que vos diz respeito.
Saem para a azáfama do arraial, cruzando-se com gente de muitas raças, em que predominam os mercadores chins do continente que, através do istmo, vêm fazer os seus tratos com os portugueses, com permissão dos mandarins. Dirigem-se para o aglomerado de armazéns, que enquadram a imensa feira de troca, compra e venda de produtos, que para ali concorrem transportados pelos portugueses, vindos de todas as partes do mundo – da Europa, África, Arábia, Índias, dos quatro cantos da Ásia, das ilhas e arquipélagos de todos os Oceanos e até do Brasil, um novo mundo recentemente descoberto. 
 E não são apenas mercadorias que os portugueses carregam no bojo dos seus navios, são também novas ideias, novos usos, novos saberes que trocam entre os mais desvairados povos do planeta. Apesar de, no passado, ter cometido algumas malfeitorias de que se envergonha e arrepende, Fernão sente um grande orgulho por ter participado nessa permuta de conhecimentos. Chegara mesmo a curar a gota do Senhor de Satsuma e fizera cirurgia nos ferimentos do filho do dáimio do Bungo, curas que lhe haviam valido o reconhecimento, admiração e amizade destes poderosos reis do Japão, de que os padres da Companhia estavam agora a colher os frutos.
A voz de Melchior arranca-o às recordações da vida que repudiara, ao envergar a loba de noviço e fizera o seu juramento, mas que, quando menos esperava, o assediavam de tentações.
– O povoado, que é assaz grande, merecia ter uma igreja como em Lampacau, mas só quando os mandarins permitirem aos portugueses viver aqui o tempo que desejarem, sem os expulsar nem lhes arrasar as casas.
– Assim há-de ser um dia, porque Amaquao é melhor porto do que a ilha – concluiu Fernão, impaciente por conhecer a história do desaparecimento de dois juncos da frota do seu amigo Diogo Pereira, com trinta e dois portugueses a bordo. – Reverendo padre, não me quereis contar as novas que ouvistes em Cantão?
– Quase me esquecia e vós tendes parte nelas! Mateus de Brito desvendou-me o mistério dos juncos. Vinham do Sião com uma rica carga para vender na China e, quando se achavam nas costas de Fujian, foram acometidos por uma esquadra chim que os perseguiu e apresou, após fero combate. Cobiçosos das fazendas, o almirante do mar e o governador da província acusaram-nos de corsários e apoderaram-se da carga em proveito próprio, sem declararem a presa ao imperador. Para se livrarem das testemunhas da sua malfeitoria, mataram a maioria dos portugueses, os seus escravos e também as duas chusmas de chins, não perdoando sequer a vida às suas famílias, num total de noventa homens, mulheres e crianças.
– Deus seja louvado! E em terra ninguém soube de tão cruel matança?
– Os mandarins tiveram o cuidado de deixar vivos apenas alguns portugueses que não falavam a língua e, portanto, não os podiam denunciar, exibindo-os com grande desfaçatez por toda a província, cobertos de ferros e metidos em gaiolas, como troféus do combate ao corso, sem esperança de salvação. Mas Deus não dorme. Entre os chins que o almirante e o governador mataram, havia gente de Fujian, cujos parentes denunciaram o crime ao imperador, que ordenou uma devassa. Averiguado o caso, os mandarins foram castigados com o maior rigor e os sobreviventes portugueses, absolvidos da acusação de corso, foram condenados apenas por fazerem veniaga sem licença, a uma pena de prisão muito mais leve, nos troncos de diferentes cidades.
– Se já não é caso de morte, porque não os soltam?
Era o de Mateus de Brito, por ter matado soldados chins durante a batalha nos juncos. – Fernão sentiu o desalento na voz de Melchior. – Paguei ao regedor principal uma peita de mil e quinhentos cruzados, lembrei-lhe o acordo que Leonel de Sousa, a quem eles chamam Chou Luen, fez com o haidao Wang Po, para dar liberdade de mercancia aos portugueses, mas só consegui que, em sinal de boa vontade, lhe mudasse a sentença de morte para uma de cárcere e que pusesse todos os cativos juntos no tronco de Cantão, para se ajudarem uns aos outros e ser mais fácil resgatá-los. Nestas andanças e trabalhos, valeu-me a preciosa ajuda de um português, que vive como um abastado mercador da terra, com a mulher chim e os filhos. Chama-se Jorge Mendes…
– Jorge Mendes? – brada Fernão, incrédulo. – O meu companheiro de armas, cárcere e exílio na China? Não pode ser, reverendo padre, o mundo não é assim tão pequeno! Esse ficou ao serviço dos tártaros, que nos libertaram, em vez de vir connosco para Malaca.
– Pois é esse mesmo Jorge, meu filho! Não o anunciei como um caso estranho? Também ele ficou pasmado quando soube que tínheis entrado para a Companhia. Contou-me como andou convosco no corso, na frota do capitão António de Faria, como naufragaram com outros sete portugueses na baía de Nanquim e estiveram todos presos no mesmo tronco de Pequim, sendo condenados a trabalhar na construção da Grande Muralha… – O padre solta uma risada e acrescenta: – Ele afiançou que era mais fácil ver a Satanás arrepender-se dos seus pecados e fazer-se padre, do que a Fernão Mendes Pinto, o homem-dos-sete-ofícios!
– É mais fácil ver o argueiro no olho do vizinho, que a trave no próprio olho! – exclama Fernão, picado pelo dito e pela risada do padre. – Que topete tem esse marau! Pelo chiste, parece-me Jorge Mendes, sem dúvida.
– Foi por saber que estáveis em Amaquao que ele resolveu vir em pessoa, com um junco de mercadorias para levarmos ao Japão. Disse-me que vai surpreender-vos muito, pois encontrou o tesouro que perdestes em Quansy.
Fernão sente um nó na garganta que o sufoca, o suor gelado escorre-lhe pelo corpo, como num ataque de sezões e não consegue dizer palavra.
– Foi ele quem me trouxe para cá – prossegue Melchior, sem se dar conta da sua torvação. – Em Cantão não achou padre que o casasse com a sua companheira, que também quer ser baptizada, e pediu-me para celebrar o seu matrimónio aqui, onde lhe servireis de testemunha. A esposa é filha de um português que vivia exilado na Grande Muralha e de uma mulher chim. Que tesouro era esse, que perdestes, irmão Mendes?
Fernão procura dominar o vagado que o faz cambalear, como horas antes no cais, quando a mulher o fitara. Teria Jorge Mendes encontrado, por fim, as duas filhas de Vasco Calvo, desaparecidas? Se a mulher de Jorge era Lijie, a formosa filha mais nova de Vasco Calvo, então o tesouro perdido era a outra filha, a doce Meng, sua noiva… 
***
Casa de Portugal

           Adoeci à chegada. Não com o terrível escorbuto, pleurisia ou febre tropical que ameaçavam o dia-a-dia do meu Corsário e de outros navegantes, meses a fio expostos a todas as intempéries e às condições sub-humanas das “prisões do mar” em que singravam nos oceanos.
Quando muito um vírus ou mera constipação causada pelo ar condicionado, frígido, do hotel, em contraste com o calor primaveril do Março macaense, achaque insignificante mas que me impediu de participar na minha primeira conversa de escritores sobre a condição humana. Está provado que os portugueses do presente já não são como os de antanho – fortes, feios, façanhudos! Continuam presunçosos e invejosos, conservando o mesmo espírito curioso e hábil que os faz mestres do desenrascanço e da adaptação a novos mundos, sempre que a incompetência dos nossos governantes e a ausência de perspectivas de vida os obriga a emigrar.
Congratulo-me, todavia, por a condição da mulher, no Ocidente, já não ser como antes, a de mero objecto ao serviço do homem, escrava, manceba, concubina ou mesmo esposa, comprada, vendida ou dada, usada e abusada pelos donos, fossem eles senhores de escravos ou pais, maridos e irmãos. Como sucede ainda em muitos países onde vigora o fundamentalismo islâmico e também na Índia, entre outros. Sem direitos nem vida própria, também elas tomaram o seu destino nas mãos, embarcando nas naus da aventura, de início incógnitas, disfarçadas de homem, com a mesma coragem e o mesmo espírito indómito, em busca de uma vida melhor.  
É graças a essa luta de séculos que posso escrever romances e que estou aqui, em Macau, a assistir a uma conversa entre autores de língua portuguesa de vários continentes, ouvindo uma escritora moçambicana que admiro muito pela denúncia, que faz nas suas obras, da condição sofrida da mulher africana. “Escrevo estórias da sua humilhação, dor e sacrifício”, diz e acrescenta, “falo de sentimentos, mas não de sexo e erotismo, porque os homens é que sabem escrever sobre essas coisas”.
Pasmo. O erotismo feminino tem sido, ao longo do Tempo, uma força que move montanhas. Uma mulher, real ou ficcionada, não é completa sem a sua sexualidade. O livro do Génesis, no Velho Testamento, é o melhor exemplo e forneceu-me material para duas dezenas de contos eróticos sobre a condição inferior da mulher, nos templos bíblicos, as suas vivências, sentimentos e sensações, como se repercutem no presente. Escritos decerto com uma linguagem diferente da do homem, porque a percepção masculina é toda outra. Mas quem, melhor do que uma mulher, saberá descrever as sensações do seu corpo, quando ama e se oferece? Ou a sua repulsa quando violada? A medida exacta do arrepio da pele, o suspiro contido na garganta, o marulho do sangue nos ouvidos, a intensidade da onda, o mareio do espasmo?
***
O noviço Fernão Mendes esforça-se por se aplicar com devoção ao ritual da missa, em que serve de acólito ao padre mestre e ao presbítero, diante do rústico altar da cabana paramentada de igreja, que se encheu de crentes, porque quem anda no mar aprende a rezar, ensinado pelo medo da morte, a mais fiel e constante companheira de um mareante.
Não tem forças para conter o vendaval das recordações que Melchior inadvertidamente soltara com o seu relato, abrindo a “caixa de pandora” dos segredos de um passado funesto, ainda tão próximo. Só o seu corpo permanece ali, com gestos de bonifrate articulado, porque a alma e o pensamento já voaram para longe, até ao purgatório de expiação da culpa e do remorso, que fora a sua prisão na China.
Na falta de provas e testemunhas, a sentença de morte que pesara sobre os nove portugueses cativos por práticas de corso, fora substituída por uns meses de trabalhos forçados na construção da Grande Muralha, no troço de Quansy. Naquele fim de mundo, haviam penado as penas do inferno, mais por culpa dos seus mútuos ódios e desacatos (fruto da arrogância e invejice que estão na massa do sangue dos portugueses) do que dos seus algozes, tendo perdido por fim toda a esperança de liberdade e de regresso a casa. 
No entanto, por mais infame que seja a gente lusa, sempre traz o nome de Deus na boca e no coração, por isso, embora faça cair sobre os portugueses os piores castigos pelos seus pecados, o Senhor nunca os abandona à má sorte em terras de gentios, idólatras ou pagãos, servindo-se muitas vezes de estranhos caminhos para a sua salvação.
O primeiro milagre que lhes sucedera em Quansy fora a improvável presença de Vasco Calvo naquele fim-de-mundo. Um mercador português, antigo companheiro de prisão e de exílio de Tomé Pires, o infortunado embaixador, enviado por el-rei D. Manuel ao imperador da China! Sem meios de volver a Portugal, o “Alcochete” casara com uma mulher chim de quem tinha quatro filhos, levando uma vida tranquila, aceite por todos como um natural da terra.
          Recebera-os na sua casa como se fossem família, mitigando-lhes a fome, o desespero e a solidão; e, na certeza de que eles ficariam ali o resto das suas vidas, oferecera em casamento as filhas Meng e Lijie, o seu bem mais precioso, a Fernão Mendes Pinto e a Cristóvão Borralho, os dois amigos que mais estimava, por serem os únicos cordatos e assisados no bando de arruaceiros.
Desde o primeiro momento em que a vira, Cristóvão perdera-se de amores e fora amado por Isabel, o nome secreto com que o pai baptizara Lijie, à míngua de padre (tal como fizera a Meng, a quem chamara Ana), no oratório escondido que tinham em casa e onde rezavam todos os dias, com um fervor que comovera os corações mais empedernidos do bando de condenados.
A filha mais velha não era tão bela como a irmã, mas soubera prendê-lo com a sua doçura e entendimento, abrindo-lhe a alma às confidências mais íntimas e ele confessara-lhe a sua desmedida paixão por uma cativa cauchim, uma noiva furtada por António de Faria quando ia ao encontro do seu esposo. Comprara-a a peso de ouro e amara-a como a uma rainha, sem jamais poder abrandar o seu ódio e repulsa. Huyen preferira a morte ao seu amor, deixando-lhe uma chaga aberta no peito que não sarava. A moça consolara-o com palavras carinhosas e amara-o, sem nada pedir em troca. Cheio de gratidão, ele aceitara o casamento, rogando a Deus que o fizesse esquecer a indómita Huyen nos braços da submissa Meng, selando assim o seu destino de exilado.
Mas o homem põe e Deus dispõe… Faziam-se os preparativos para o casamento quando a ameaça dos tártaros se tornou mais real e o medo da morte ou de um destino pior se apoderou das gentes, como um surto de pestilência, transtornando-lhes o siso e as vidas, ao quitar-lhes a esperança de futuro. Num acto de desespero ou de amor, Meng oferecera-lhe o corpo intocado, como já lhe havia entregado a alma, abrindo-se como uma flor nas suas mãos e ele recebera-a como uma dádiva dos céus.
Amara Meng, mas esse amor não lograra extinguir o desejo cego que sentira por Huyen, a noiva roubada, cujo corpo passivo se arrepiava de asco quando ele a acariciava, buscando-lhe os lábios sedosos que se contraíam mareados ou os olhos sombrios que pareciam trespassá-lo sem o ver, ferindo-o de dor e vexação. Aceso de despeito, tomava-a com a fúria de um violador, repetidamente, para a magoar e humilhar, por sua vez, sem todavia saciar a ânsia que o consumia e fazendo com que ela o odiasse cada vez mais. Meng era o repouso do guerreiro, o regaço maternal onde pousar a cabeça cansada e, de olhos cerrados, sentir nos cabelos o afago de dedos carinhosos.
O som insistente de uma campainha arranca-o às suas recordações, trazendo-o de novo para o ofício da missa, no momento em que o padre mestre consagra a hóstia. O noviço recolhe-se no temor da cólera de Deus, talvez um raio a fulminá-lo – castigo merecido pelos maus pensamentos, as emoções terrenas de que a lembrança das mulheres amadas lhe enchera a alma, expulsando dela o amor divino.
Aquele mesmo gesto de consagração fizera Melchior na ermida de Nossa Senhora da Graça, em Goa, no domingo do Pastor Bonus, aos oito dias de Abril do ano do Senhor de 1554, antes de partirem para esta viagem do Japão, quando os padres que iam embarcar, postos de joelhos, renovavam os seus votos a Deus. Num arrobo de fé, causado pela morte do padre Francisco Xavier de quem fora amigo e pelo milagre do seu corpo incorrupto, Fernão quisera entrar por força na Companhia de Jesus e lançara-se por terra, ante a hóstia, fazendo os mesmos votos de perpétua castidade, pobreza e obediência, tal como ouvira aos outros irmãos, jurando ao padre mestre que estava firme e constante na vida de sacrifício que escolhera. Melchior envergara-lhe a loba de noviço e ele ouvira, em êxtase, o choro comovido dos seus amigos, recebera os seus abraços de despedida e, num gesto público de renúncia aos bens materiais, tirara dos dedos os anéis de pedras preciosas e fora pendurá-los na imagem do Menino Jesus.
Manter a sua constância não fora afinal tão fácil quanto pensara. Continuava a cometer o pecado do orgulho, incapaz de sofrer ofensas e de dar a outra face. Em Panane quando os mouros os insultaram, desembainhara a espada e, se não fora a ordem escandalizada do padre mestre, teria enviado algum dos meliantes para o inferno; Melchior forçara-o a uma prudente retirada e Fernão ficara a remoer a vergonha da fuga, cheio de ressentimento contra o seu superior. Agora, bastara o nome de Meng, para lhe pôr no corpo e na alma o fogo do desejo, alentado pela recordação da doçura da sua pele, do seio como um fruto aninhado na concha da sua mão, do sabor de um beijo, deleites proibidos que julgara extintos.  
O segundo milagre de Quansy dera a liberdade aos nove cativos portugueses, vindo com os cavaleiros do apocalipse, corporizados na horda dos tártaros que fizera o assalto à Grande Muralha, acometendo a cidade como um flagelo de Deus, incendiando e arrasando tudo à sua passagem, deixando atrás de si um rasto de sangue, violação e morte. A fuga fora impossível, porque as portas da muralha estavam cerradas.
Uma multidão enlouquecida corria sem tino pelas ruas, homens, mulheres e crianças, senhores e servos, ao sabor do medo, acossados pela alcateia vermelha que os perseguia sem tréguas, atropelando-se, empurrando-se, batendo-se por um improvável abrigo ou esconderijo que os livrasse da horda, lançando-se do alto das muralhas para não cair nas garras dos inimigos.
Fernão acudira a oferecer ajuda a Vasco Calvo, mas achara a casa vazia. Sem esperança de salvar a noiva, levara o inconsolável Cristóvão e os companheiros para o tronco de Quansy, onde jaziam alguns cativos tártaros. Junto deles, para mais sendo estrangeiros, talvez tivessem salvação. A artimanha resultara e o capitão dos invasores, depois de os ver escaramuçar com espadas e alabardas, em vez de os matar, oferecera-lhes postos de comando nas suas tropas.
No arraial dos “demónios vermelhos”, haviam procurado as noivas, dias a fio, em todos os lugares de cativos, em particular nas tendas onde guardavam as moças para desfrute e prazer dos vencedores. Meng e Lijie haviam desaparecido sem deixar rasto, apanhadas na enxurrada da guerra.
Desperta novamente do seu enleio, ao ouvir o padre mestre abençoar os fiéis e, ainda alheado do lugar onde se encontra, fica a vê-los sair numa algazarra de feira. Um casal acerca-se dele e Fernão, de lágrimas nos olhos, reconhece Jorge Mendes e Meng que lhe sorriem.
***
Ópera chinesa de rua
         O arco decorativo encarnado e amarelo, à entrada da pequena rua, perto do hotel, tem as lâmpadas acesas e atrai-me como um íman, à procura do tempo perdido. Fernão Mendes Pinto chamou-lhe pailó, na sua “Peregrinação” e eu passo por baixo dele, feliz por ver ali uns resquícios do passado. Sinto-me como se tivesse cruzado os umbrais de um portal mágico para entrar de novo nesse universo paralelo onde, num mundo que se inventa a cada passo, sou mais uma entre as personagens com que me cruzo.
         A rua, acobertada de toldos, refulge com as luzes de uma dezena de meios-arcos, suspensos do alto como dosséis ou pequenas cortinas de teatro, nos mesmos tons de vermelho e amarelo, adornados com os elegantes caracteres chineses, cujo significado desconheço. Uma cortina encarnada decorada com dragões e pássaros de belas cores, cujos símbolos terei de investigar mais tarde, esconde um palco armado junto a um templo, uma casa igual às outras, agora assinalada por um dos semi-arcos, pelo contínuo movimento de pessoas e pelo fumo dos paus de incenso.
         Vai ter lugar uma representação teatral, drama e música de raízes ancestrais, para meu deleite e também eu agradeço a Buda e aos deuses tutelares terem encaminhado os meus passos para aqui. Amo a Ópera Chinesa, tanto quanto o Teatro Noh do Japão, por isso, assistir a esta função numa rua de Macau parece-me um sonho.
         Em três filas de bancos corridos senta-se meia centena de idosos, homens e mulheres, de um qualquer centro de dia ou lar da terceira idade, a quem as acompanhantes distribuem a merenda e que me olham com estranheza enquanto comem. Não há mais nenhum ocidental entre os espectadores e o homem que me recusara o único espaço vazio a seu lado, afasta-se um pouco e faz-me sinal para que me sente. Curvo-me num agradecimento e aceito.
          Estala uma altercação entre uma mulher que deseja sentar-se no lugar que outra espectadora reservou com uma garrafa de água. Não percebo o que ela diz mas o tom e os gestos são universais. A intensidade da voz e o volume das palavras aumentam na razão directa do silêncio da outra que de cabeça voltada para trás age como se a cena não lhe dissesse respeito. Exasperada, a requerente vai ao templo buscar um assento de madeira que coloca mesmo na frente da sua muda opositora, sentando-se com ar triunfante de quem derrotou um inimigo. A “adversária” arqueia os cantos dos lábios num sorriso esfíngico e, nesse momento, retira a garrafa para que um idoso bem apessoado se sente a seu lado e oferece-lhe um bolo, com um rasgado sorriso.
A agitação dos espectadores abranda quando se ouvem os primeiros acordes dos instrumentos de corda, sopro e percussão. A cortina abre-se sobre um cenário minimalista, mas fortemente colorido, onde os actores-cantores evoluem com uma graciosidade e leveza que me fascinam. A primeira peça é, sem dúvida, clássica, reconheço algumas personagens-tipo pela caracterização dos trajos e pinturas. As vozes são muito belas e a mímica, de tão expressiva, torna quase compreensível o enredo. Há amores contrariados, anciãos despóticos, criados pícaros que fazem rir, donzelas órfãs caídas em desgraça, um velho fidalgo que reconhece a filha roubada em menina, julgada morta ou perdida para sempre – tema tão caro ao imaginário humano, do Oriente ao Ocidente.
Nesta atmosfera irreal sinto-me na pele do Outro, do fo-lang-chi olhado com estranheza e desconfiança, vindo do cabo do mundo na ânsia de “descobrir” este universo para ele tão novo e incompreensível, mas que o maravilha. Reencontro Fernão Mendes Pinto no mesmo fascínio pelo Oriente, que li nas suas descrições apaixonadas das cerimónias e divertimentos dos povos que achou ao longo da sua peregrinação. Vejo-o absorto no espectáculo, talvez no templo de A-Ma, alheio à curiosidade e estranheza dos camponeses de Mong H’á, dos pescadores de Haojing ou dos peregrinos vindos do interior da China para venerar Guanyn, a deusa misericordiosa. 

***
           Procurara refúgio no templo de Guanyn, na certeza de que não acharia ali portugueses e que os chins, apesar de estranharem a sua presença, o deixariam em paz, ao vê-lo fazer os seus rituais com igual devoção. Na sua longa peregrinação, Fernão aprendera a orar ao Deus dos cristãos no templo de qualquer divindade e de qualquer religião, fosse na China ou no Japão, em Java, Samatra ou Sião, porque a vida de andarilho e o conhecimento de outros homens e mundos lhe ensinara que há apenas um Deus, seja qual for o nome por que é invocado em hora de aflição.
Hoje não quer rezar. Precisa apenas de estar só, para pensar, para expurgar da alma o seu ressentimento contra esse Deus ingrato que o abandonou. Despojara-se de todos os seus bens para O seguir, como soldado da Fé à conquista das almas dos gentios, erguera-Lhe igrejas para que pudesse ser adorado em terras idólatras, renunciara às honrarias do mundo em troca da salvação da sua alma, posta humildemente ao Seu serviço. Mas o Senhor, cobiçoso de maiores sacrifícios, apoderara-se também de todos os seus afectos, das mulheres que amara aos irmãos que chamara para a Índia, quando enriquecera e a quem Ele dera o martírio às mãos dos mouros. E, insatisfeito, fora ainda mais longe.
Nesse preciso momento, esperam-no na igreja do irmão Gregório Gonçalves, para servir de acólito ao padre Melchior, na celebração do casamento de Jorge Mendes com a filha de Vasco Calvo, baptizada na véspera com o nome de Ana, que seu pai lhe dera em segredo. Ana é Meng, a sua noiva desaparecida na voragem dos tártaros. A mulher do seu companheiro de exílio é Meng e não Lijie, a irmã mais nova, como pensara de início.
 Limpa os olhos à manga da veste, para que os chins, tão ciosos das suas emoções, não se espantem com o espectáculo das lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, mas não consegue evitá-las. Deus burlara-se sem piedade dos seus sentimentos, cuspira-lhe no rosto o Seu desdém, ao fazer ressurgir Meng das sombras do seu passado, roubando-lhe uma esperança que, todavia, lhe estava interdita pelos juramentos sagrados que fizera, ao entrar para a Companhia de Jesus. Agora, já nada lhe resta.
 Templo de A-Má
O padre mestre, sabedor da sua paixão, exigira-lhe, como punição, que estivesse presente para purgar a alma do desejo carnal e praticar os votos que fizera de obediência, pobreza e castidade, mas Fernão recusara-se a obedecer, desacatando as ordens do seu superior. Quiçá o expulsem da Companhia, Melchior tem todas as razões para o fazer, porque num assomo de ira, sem atender às suas explicações, quase matara Jorge Mendes dentro da igreja.
Quando vira Jorge e Meng na sua frente, a sorrirem-lhe, nem se apercebera da ausência de Lijie, porque só tivera olhos para a mulher amada, espantado com o tumulto dos sentimentos que, passados tantos anos, a sua vista lhe causava, como se a ausência lhe tivesse acicatado o desejo e o fizesse amá-la mais. Nem quando o antigo companheiro o abraçara com emoção e alegria, lograra desviar o olhar dela. O tempo fora generoso, conservara-lhe os traços delicados do rosto, ao mesmo tempo que lhe modelara as formas esbeltas de menina num voluptuoso corpo de mulher que ele ansiava ter nos seus braços. 
Nos olhos negros de Meng pudera ver a ternura com que sempre o olhara, mas também uma infinita tristeza que lhe pusera um nó na garganta. Amá-lo-ia ainda? Estaria a sofrer, vendo-o paramentado de sacerdote, cuidando que o perdera quando acabara de o encontrar? 
– Com que então, padre?! Tu, o irmão Fernão Mendes? Não posso crer! – bradara Jorge, mirando-o da cabeça aos pés, sem o largar. – Mas, se cuidas que me hás-de confessar, estás bem enganado!
– Sou apenas noviço, ainda não fiz os últimos votos – dissera, procurando dominar a tremura na voz. – Vamos sentar-nos naquele banco para me contares com toda a minudência o que se passou, depois da nossa partida. Como encontraste Meng e Lijie, quando eu e Cristóvão Borralho não as pudemos achar, apesar de termos vasculhado os quatro cantos do arraial daqueles bárbaros? E Lijie, por que não veio convosco?
– Sentemo-nos, então, que a história é longa e de pasmar.
A igreja ficara vazia, os padres Melchior e Gregório, junto ao altar, conversavam animadamente sobre assuntos da congregação de Amaquao, das dificuldades de pregar na China e da viagem dos jesuítas ao Japão. Sentaram-se no banco e Meng deslizara para longe deles, tomando a postura recolhida de quem reza.
– Vocês não puderam achar a Meng e a Lijie, porque elas não estavam no nosso arraial – começara Jorge e, vendo a sua surpresa, prosseguira antes que ele pudesse interrompê-lo: – Elas foram feitas cativas em casa de uns parentes da mãe, uma gente muita abastada onde Vasco Calvo as deixara, cuidando que ficariam a salvo, indo esconder-se noutra casa com a mulher e os dois meninos. Os parentes pagaram grandes peitas ao capitão inimigo para que lhes poupasse a vida e entregaram como penhor da sua lealdade as duas moças que, sendo filhas de um fo-lang-chi, pela sua raridade seriam um presente digno d’el-rei dos tártaros. As cativas foram levadas para o lote do saque destinado a Alta Khan e não viajaram connosco.
Por ter concebido a estratégia para a conquista de uma fortaleza chim e liderado o corpo de guerreiros que a tomara, sendo o primeiro homem a entrar nela, Jorge Mendes ganhara o valimento do rei dos tártaros que lhe concedera o posto de general e o cumulara de benesses, permitindo também o regresso a Malaca dos oito portugueses que tinham participado na batalha. Fora após a partida dos companheiros, durante uma festa no arraial, que ele voltara a ver as duas irmãs.
Já não se lembrava do motivo das celebrações de Alta Khan, talvez o noivado da sua irmã com um monarca aliado, porque tinham durado vários dias e, na última noite, como era costume na sua nação, o rei distribuíra ricos presentes pelos seus oficiais: jóias de ouro, prata e pedraria, trajos e panos preciosos, armas, cavalos e mulheres, que mandara trazer das tendas, onde guardava o espólio magnífico das suas conquistas. Entre as cativas que o Khan destinara para oferta, achavam-se Meng e Lijie.
Jorge tudo fizera para resgatar as duas irmãs, lançara-se mesmo aos pés do rei, suplicando-lhe que lhas entregasse, por serem filhas de um português exilado em Quansy, que lhas prometera em casamento, o qual só não se consumara porque as suas tropas tinham invadido a cidade. Como os tártaros tinham várias mulheres e concubinas, o argumento fora de peso.
– Dou-tas – disse-lhe Alta Khan –, se ninguém tas disputar.
Quisera-as um general mais velho, um rival invejoso dos favores que o rei concedia ao estrangeiro e disposto a tudo para o fazer perder a face. Desafiara-o para um combate corpo a corpo.
– Se lutasse com ele, não teria dificuldade em vencê-lo, por ser velho e estar bêbado – concluíra Jorge, com voz embargada pela emoção. – O Khan assim o entendeu e não quis a humilhação do seu valoroso general, por isso, com chistes e lisonjas, impediu a luta, repartindo o presente. Ofereceu-lhe Lijie e entregou-me Meng. E foi assim que ela se tornou minha mulher.
Mudo de pasmo, Fernão olhara para Meng e não se comovera com as lágrimas que lhe corriam em fio pelo rosto, nem com os soluços abafados que lhe sacudiam o corpo.
 – Ela era a minha noiva, Jorge! – balbuciara. – Íamos casar…
– Tu tinhas partido, sempre falaste em volver a Portugal. Nós estávamos ali os dois sozinhos. Sem esperanças de volver a ver-te, Meng aceitou viver comigo.
– És um traidor, Jorge Mendes! Ela é a minha mulher.
– Que se passa contigo, homem? Tu és um sacerdote, um padre!
– Judas! Velhaco!
Lançara mão à espada, que um menino acólito lhe trouxera no final da missa, e só não lhe trespassara o coração, porque Meng se metera entre ambos, dando tempo aos padres para o agarrarem e manietarem.
***
Praça do Lilau

            Não tardarei a deixar Macau, rumo à China, por onde peregrinarei duas semanas (um cisco de tempo) numa busca decerto infrutífera de vestígios deixados por Fernão Mendes Pinto e outros aventureiros portugueses.
            Não sei se voltarei, porque não bebi a água da Fonte do Lilau, distraída pela sessão de fotografias de uns noivos chineses, trajados “à ocidental”, em que o vestido da bela desposada, branco com grinaldas de folhos cor de púrpura, parecia ter saído do guarda-roupa de uma marcha de Santo António. Também não vi a gruta de Camões, um dos motivos por que quisera vir a Macau.
            Perdi certamente muito mais coisas que deveria ter visto, contudo parto imensamente mais rica do que cheguei, embora sem ter ganho o Jackpot do Casino de Lisboa. Levo um baú mágico, cheio de imagens, de sensações, de impressões para futura memória.
Inesquecível a minha conversa com os alunos e professores da Escola Portuguesa, pelo caloroso abraço dos seus aplausos; a emoção com que escutei, numa sala cheia de amigos da Casa de Portugal, uma das melhores apresentações do meu Corsário dos Sete Mares; o assombro de ver as minhas obras expostas na graciosa Livraria Portuguesa, refúgio da nossa cultura em terras da China; os encontros em gostosas tertúlias-de-fazer-amigos.
Os jardins, as praias, as praças e calçadas, as lojas tradicionais escondidas em ruelas e becos, a barbatana de tubarão na montra do boticário, os sabores, os odores, o mistério.
Para sempre Macau. 
***
          No refúgio do templo gentio, bafejado pelos fumos perfumados, Fernão sente o coração apaziguado e sabe o que tem a fazer. Mesmo que o não expulsem, sairá por sua expressa vontade da Companhia de Jesus, por não sentir inclinação para a vida religiosa.
Cumprirá a sua missão como embaixador do Vice-Rei ao Japão e, no regresso, tratará de seguir para Portugal, como estivera prestes a fazer antes da sua epifania mística, um momento de loucura que pagara bem caro, pois irá volver à pátria quase tão pobre como viera, apesar de ter sido um dos mais ricos mercadores da Índia.
Antes de abandonar o templo queima uns pivetes de incenso em honra de Guanyn, a divindade misericordiosa, para que se compadeça dele.
Calçada Portuguesa de Macau




Lisboa, 4 de Novembro de 2013

Deana Barroqueiro


2 comments:

  1. Adorei as histórias entrelaçadas de meus aventureiros preferidos, a escritora e o corsário, tão distantes no tempo e tão próximos na determinação de "descobrir" e documentar para a posteridade suas aventuras.
    Continua firme com tua dedicação à tarefa auto-imposta de instruir e deleitar teus leitores.
    Parabéns por mais essa valiosa contribuição para o património da humanidade !
    Eugénio conceição

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  2. Muito obrigada, caríssimo Eugénio Conceição, por essas palavras tão elogiosas, que ainda têm maior sabor por serem ditas por alguém cujo espírito crítico e fino gosto me têm ajudado muitíssimo nas correcções dos meus romances, de que és quase sempre o primeiro leitor. Bem hajas!

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